É o conhecimento perigoso?
Fronteiras entre
ciência, tecnologia e ética
Existe um traço
perturbador de nossa época – a dissociação de fato/ valor, ser/dever ser, ou física/ética, conhecimento da
realidade/atribuição de sentido à vida. As ciências descrevem e conhecem o
mundo tal qual é. Calam sobre as angústias humanas. Homem muitas vezes é
relegado a condição de um acidente no cosmo ou um ruído que deve ser banido
para a otimização da performance do sistema. É como se o homem tivesse
despertado de seu sonho milenar, e descoberto que agora " como um cigano,
está à margem do Universo onde deve viver. Um Universo surdo à sua música,
indiferente às suas esperanças, como a seus sofrimentos ou a seus crimes".
Ele sabe que "está sozinho na imensidão indiferente do Universo, de onde
emergiu por acaso. (Monod: 1989, p. 190-8). A cosmologia medieval
(aristotélico-cristã) propunha um cosmo fechado, finito, hierarquicamente ordenado
e qualitativamente determinado, no qual a terra mãe no centro servia de palco
para a salvação ou danação humana. O fato é que havia uma coincidência plena de
conhecimento da realidade e compreensão do "sentido" da nossa vida. A metafísica tradicional por mais de dois mil
anos postulou a separação entre mundo
terrestre e mundo celeste, o reino do efêmero, do nascer e do perecer opunha-se
às esferas perfeitas, ao reino do
divino, do incorruptível, do eterno, do verdadeiro Ser e da verdade.
A revolução
copernicana [Heliocêntrica] destrui o
cosmo finito e fechado, revelando
um universo de proporções ilimitadas, aberto que se confunde com o
espaço puro e homogêneo da geometria. Um espaço puro redutível ao cálculo onde
não há lugar privilegiados, apenas extensão submetida ao movimento. A Terra já não é mais o centro de um Cosmo
finito e fechado, doravante ela é um minúsculo planeta num sistema solar
situado numa galáxia qualquer em meio a bilhões de galáxias. Impossível
explicar tal realidade cósmica em função do homem, cuja existência ocupa um
tempo insignificante no horizonte da idade do Universo [15 bilhões de anos],
Estranhamente, quanto mais conhecemos o macro e o micro cosmo pela mediação da
técnica e da ciência, mas nos sentimos estranhos e sozinhos diante dessa
imensidão indiferente do universo. A revolução copernicana que desalojou a
terra do centro do universo exigiu que se repensasse o novo estatuto do homem
enquanto sujeito do conhecimento, ético
e político, representando um duro golpe no narcisismo humano. Emerge dessa
necessidade de se estabelecer um novo fundamento para o conhecimento humano, o
todo poderoso sujeito pensante cartesiano, que enclausurado na certeza de sua
auto evidencia para si mesmo proclama que nada, absolutamente nada pode
permanecer oculto a uma razão disciplinada pelo método.
A Cultura
"pós-moderna" da sociedade pós-industrial, a sociedade do conhecimento
e da informação, é fruto tardio da deposição do cogito cartesiano operada por
Nietzsche, Marx, Freud e Heidegger. Na cultura pós moderna, o "real"
- "fatos" que as ciências buscam conhecer não passam de
"construções intelectuais", discurso ou "narrativa". A
ciência é ideológica, é instrumento de dominação de uma civilização, "eurocêntrica",
"opressora", "machista", cartesiana e cristã etc. Em meio a
emergência dos multiculturalismos,
estudos culturais, leituras de "gênero", ressentimentos contra as
ciências, busca-se o intuitivo, o
mágico, o místico, o irracional, o marginal. Até mesmo nas universidades existe
uma certa condenação rasteira da ciência e da tecnologia, que realmente não
chega a colocar em questão a própria essência da técnica. Muitas vezes a
racionalidade é condenada de forma leviana como desencantadora do mundo. Essa filosofia de salão que se extasia no
relativismo cultural blasfema que a ciência não tem mais direito em afirmar a
verdade do que o mito tribal. A ciência não passaria assim de uma espécie de
mitologia, crença, superstição adotada por
uma determinada tribo – a do urbanóide ocidental moderno refém de seus
medos e inseguranças.
A partir dos anos 40
do século passado, a Escola de Frankfurt
se encarregaria de fomentar, por trás de sua crítica ao capitalismo, uma
das mais persistentes e influentes críticas à racionalidade científica, com
profundas repercussões nos movimentos estudantis da Europa da década de 60.
"A física é burguesa", "a ciência é o capital": estas
inscrições, nos muros da Paris de 68, resumiam, na verdade, os temas de Adorno,
Horkheimer e, principalmente, Herbert Marcuse (1898-1979). Para Marcuse,
ciência e capitalismo são uma só coisa. Em outras palavras, ciência
(conhecimento racional e objetivo) e ideologia (concepção de mundo) se
confundem. Desaparece o valor objetivo do conhecimento científico. A crítica da
"razão instrumental" – ou "razão unidimensional", ou
"razão técnica" – encerra, no fundo, uma crítica da própria Civilização ocidental tecnico-científica. Sua
polêmica era contra a objetividade,
com a "submissão" do homem às coisas. Independentemente das épocas
históricas, o trabalho sempre foi, para ele, "trabalho alienado" (o
marxismo marcusiano : objetivação" = "alienação. Eliminar a
"alienação" é eliminar a própria objetividade. Essa
"superação", portanto, não pode ser buscada no trabalho, mas... no
jogo. É somente no jogo que o homem "não se conforma aos objetos, à sua
regularidade".
Ciência e capital
eram uma só coisa: os males que o marxismo havia denunciado no capitalismo eram
descarregados por Marcuse (e, diga-se, também por Adorno e Horkheimer)
"nos ombros de Galilei e Bacon". O desastre havia começado já com a
revolução científica do século XVII.
O alvo, agora, é o
vertiginoso processo de informatização. Lado a lado com a chamada III revolução
industrial, crescem também a tecnofobia e a rejeição das tecnologias.
Recorde-se que o manifesto do terrorista Unabomber,
publicado em setembro de 1995 pelo Washington
Post, elege como inimiga a "sociedade industrial" (curiosamente,
um conceito marcusiano), que ele considera "um desastre para a espécie
humana" e contra a qual propõe uma "revolução": "a única
saída" – pontifica – "é dispensar o sistema tecnológico
inteiro". Seu temor são as "máquinas inteligentes", que acabarão
por decidir no lugar da humanidade. "Quando chegar a esse estágio, as
máquinas estarão, efetivamente, no controle. As pessoas não poderão
simplesmente desligar as máquinas porque elas estarão tão dependentes delas que
desligá-las equivaleria a cometer suicídio".
É o conhecimento perigoso?
A idéia de que o conhecimento é
perigoso está arraigada na nossa cultura. Já Adão e Eva, segundo a Bíblia,
foram proibidos de alimentar-se dos frutos da Árvore do Conhecimento. Prometeu
foi punido por ter dado o saber ao mundo. Na literatura, o Dr. Frankenstein é a
imagem do cientista, pintado como um arrogante desalmado que de tudo é capaz
para atingir seus objetivos, quaisquer que sejam as conseqüências. No cinema, é
o gênio louco que produz monstros e catástrofes. Imoral manipulador da
Natureza, o cientista também foi responsabilizado pela construção da bomba atômica
e, agora, é visto com suspeita em virtude da engenharia genética. Jornais e
revistas publicam com freqüência textos alarmistas que advertem sobre os
"perigos" da pesquisa genética (lembre-se a histeria sobre a
clonagem), do projeto do genoma humano e dos transgênicos. O horror, porém,
convive com o fascínio, já que se espera da ciência a solução para a cura do
câncer e da Aids, entre outras doenças. O fato é que existe uma separação de
fatos e valores, de ciência e ética.
Como processo de conhecimento racional e objetivo, a ciência não é guiada por
valores. Ela apenas nos mostra como o mundo é. A ciência descreve, a ética prescreve;
a ciência explica, a ética avalia. Ciência, portanto, não produz
ética. Das proposições descritivas
não é possível deduzir asserções prescritivas,
como bem viu o filósofo Hume (1711-1776). A separação de fatos e valores —
conhecida justamente como Lei de Hume — impede que do "é "derive o "deve", que do "ser" derive o "dever ser". Isso não significa que o conhecimento científico seja perigoso. O conhecimento é um bem em si
mesmo. Para o ser humano, conhecer é tão vital quanto alimentar-se, defender-se
ou amar. Já a tecnologia, contrariamente, pode ser tanto uma dádiva quanto uma
maldição. Há processos tecnológicos intrinsecamente perversos, como a
fabricação de instrumentos de tortura, armas bacteriológicas, etc.
Mas quais são,
afinal, as responsabilidades e obrigações morais dos cientistas. Posto que os
cientistas detêm conhecimento especializado sobre como é e como funciona o
mundo, e isto nem sempre é acessível aos outros, é obrigação deles tornar
públicas as implicações sociais de seu trabalho e suas aplicações
tecnológicas" (cf. artigo de Wolpert na revista Nature, 398 (1999), p. 281-82; e Wolpert: 1996, p. 185 e segs.). Se
ciência e ética, como vimos, são distintas, nem por isso o cientista está
isento de deveres éticos. Temos que lutar pela
necessidade de o público ser informado tanto sobre a ciência quanto
sobre suas aplicações.
Referencias:
Basalla, George. The history of tecnology. Cambridge,
Cambridge University Press, 8ª ed., 1999.
Bunge, Mario. Epistemologia. São Paulo, T. A. Queiroz,
2ª, 1987.
______. La ciencia. Su método e su filosofía.
Buenos Aires, Sudamericana, 3ª, 1998.
Dawkins, Richard. O rio que saía do Éden. Rio de Janeiro,
Rocco, 1996.
Marcuse, Herbert. O homem unidimensional. A ideologia da sociedade industrial. Rio
de Janeiro, Zahar, 5ª ed., 1979.
_____. Razão e revolução. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 2ª ed., 1978.
Monod, Jacques. O
acaso e a necessidade. Ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Petrópolis, Vozes, 4ª ed., 1989.
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