Wanderley José Ferreira Jr
O
próprio Nietzsche reconhecia que seus escritos eram uma escola de suspeita
contra tudo que até então se venerou e idolatrou. Nosso filósofo gostava de
comparar seus escritos com o ar rarefeito das grandes altitudes, um ar fatal
para os pulmões frágeis do homem de natureza bovina acostumado a viver na planície. Sempre nos
tornamos mais fortes quando afirmamos a vida diante do tirano que é a dor,
ensina-nos Nietzsche (Cf. HH. Prefácio). A dor para muitos espíritos débeis é
um testemunho contra a vida, contra as paixões e os sentidos. Contudo, a vida
deve ser afirmada mesmo nos momentos de maior dor e sofrimento - Amor
fati.. A existência não é algo culpado e responsável, e que, como
tal, deveria ser justificada, redimida e condenada em favor de um outro mundo.
O homem não é um ser culpado e decaído que deve ser redimido pela ascese, pelo sacrifício e pela
mortificação das paixões e dos desejos. A existência é inocente no jogo alegre
do devir que tudo destrói e tudo cria.
Em
textos como Schopenhauer como educador e as Conferências sobre os
estabelecimentos de ensino na Alemanha Nietzsche expõe sua crítica aos
estabelecimentos de ensino de seu tempo. Para o filósofo, a educação não
passaria de um sistema que insiste em banir as exceções a favor do medíocre
mediante uma crescente cientificização e historização do ensino. As críticas de
Nietzsche permanecem bastante atuais ao abordarem questões como: a massificação
do ensino, sua excessiva profissionalização e a superficialidade dos
currículos, que tratariam da cultura na aparência, pois a preocupação principal era
apenas a formação técnico-científica.
Definitivamente
Nietzsche não é um democrata ou defensor da universalização do ensino superior.
Para ele somente a classe eleita pela
natureza teria o privilégio de freqüentar os poucos estabelecimentos de ensino
cujos docentes, encarados como mestres e guias espirituais, se voltariam para a
formação desses eleitos pela sorte. Mas até que ponto seria legitimo defender,
com Nietzsche, que a universidade deveria ser o lugar para que uma casta de
privilegiados tivesse condições de acesso ao ensino não utilitário, mas voltado para o ócio e para questões filosóficas e estéticas perenes? E
como já vimos, a tese nietzschiana do ser humano como criador, domesticador de
seres humanos faz explodir o horizonte humanista e a maioria das teorias
pedagógicas em vigor. O filósofo observa que todo processo civilizatório guiado
por ideais humanistas lutou e luta contra os
impulsos, as forças desinibidoras que, segundo ele, traduzem o que o
sujeito é de fato e que corroem o
polimento civilizatório promovido pela filosofia humanista nas almas educadas.
Entretanto,
até que ponto seria pertinente a percepção de Nietzsche de que por trás da
domesticação escolar dos homens, descortina-se um horizonte de lutas
intermináveis sobre o direcionamento da criação de seres humanos? Seria esse o
conflito do futuro para Nietzsche: a luta entre os que criam o ser humano para
ser pequeno e os criam para ser grande, pensando e sentindo além de bem e mal e
inocentando a vida mesmo na dor e no sofrimento. Mas seria de fato, como denuncia de Nietzsche, a domesticação do ser
humano o ideal inconfessado de toda espécie de humanismo que acredita que pode
melhorar o homem via educação?
Nietzsche:
a necessidade de uma nova educação para um novo tipo de homem
De
16 de janeiro a 23 de março de 1872, o
jovem Nietzsche proferiu cinco
conferências sobre educação na Sociedade Acadêmica da Basiléia,
Suíça. O título das conferências
era: "Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino". O tom
geral das conferências expressa um profundo desencanto com o estado dos
estabelecimentos alemães de ensino, seja a escola técnica, o ginásio ou a
universidade. A razão principal para
decadência seria a crescente cientificização do ensino, sua massificação e a
superficialidade e limitação dos currículos voltados para formação de servidores
do mercado ou do Estado. As conferências narram um dialogo fictício entre um
filósofo e seu discípulo acerca da situação dos estabelecimentos de ensino. O
diagnóstico básico de Nietzsche: os
estabelecimentos de ensino tratam de
cultura na aparência, sua preocupação
principal é com a ciência. Isto se deve a uma interferência do Estado e da
própria ciência. A meta é qualificar mão
de obra para ocupar os novos postos da sociedade industrial, daí a necessidade
de ampliar o número dos estabelecimentos de ensino e reduzir o tempo de estudo.
Nessa
concepção científico-burocrática do ensino, nem a educação básica e as
universidades tem como alvo a formação cultural do aluno, seu refinamento
estético-sensitivo, o objetivo é a profissionalização. O indivíduo para se
tornar útil não precisa de uma longa formação; quanto mais rápido ingressasse
no mercado de trabalho, melhor. Esta concepção científico-burocrática da
educação limita cada vez mais o espaço da filosofia, da literatura e da arte. Em tal
contexto, a Cultura estaria a cargo, não dos mestres-professores, mas do
jornalismo, dos filisteus da cultura e
eruditos, esses homens de segunda mão. O Jornalismo influencia tanto o
professor quanto o aluno, fazendo com que ambos se atenham aos temas do momento.
O
estudante deve buscar nas universidades sua especialização em determinada área
do saber e não uma formação global, humanística, com aprofundamento de questões
de cunho filosófico. A intromissão das ciências na educação tem como
consequência o afunilamento do saber e a alienação do estudante para questões
filosóficas ou estéticas. Um dos grandes perigos da crescente especialização
é a perda da compreensão acerca da
comunidade de todos os conhecimentos, sua raiz comum.
Para
Nietzsche a educação deve deixar de ser um adestramento para besta humana, e
talhar um novo tipo de homem, aceitando um
princípio básico da natureza: apenas alguns seres nascem com o espírito
aberto para a cultura e para a filosofia (os eleitos), enquanto a grande
maioria nasce sem este dom. E se a universidade, a educação superior, não é
para todos, Nietzsche critica o Estado industrial burguês pela disseminação de
estabelecimentos de ensino. Entretanto, os
intelectuais 'eleitos' surgem no seio do povo, não precisam pertencer a
alguma classe 'superior'. A Universidade deveria dar a essa casta de
privilegiados condições de acesso ao
ensino não utilitário, mais voltado para o ócio, e à formulação das questões
filosóficas e estéticas perenes. Aos que
frequentam a universidade deve ser dado a chance de se dedicarem à aprendizagem
da cultura sem jamais terem que se preocupar em como podem ser úteis à
produção.
A filosofia deve contribuir para essa formação
humana baseada na criação e cultivo do raro, do além-homem, indivíduo exemplar.
Nietzsche exigia que até mesmo seus leitores fossem tipos, indivíduos
exemplares, singulares.
“ Quem sabe respirar o ar forte de
meus escritos sabe que é um ar da altitude, um ar forte. É preciso ser feito
para ele, senão o perigo de se resfriar não é pequeno. O gelo está perto, a
solidão é descomunal – mas com que tranqüilidade está todas as coisas à luz!
Com que liberdade se respira! Quanto se sente abaixo de si! – filosofia, tal
como até agora entendi e vivi, é a vida voluntária em gelo e altas montanhas –
a procura por tudo o que é estrangeiro e problemático na existência, por tudo
aquilo que até agora foi exilado pela moral. De uma longa experiência que me
foi dada por andanças pelo proibido, aprendi a considerar as causas pelas quais
até agora se moralizou e idealizou, de modo muito diferente do que seria
desejável: a história escondida dos filósofos, a psicologia de seus grandes
nomes, veio à luz para mim”. (Nietzsche, Ecce. p.
366).
Formar
que tipo de homem? pergunta Nietzsche. Formar como se esculpe uma obra de arte
o homem saudável em sua constituição
física e espiritual,capaz de fazer do combate, do desafio, da dificuldade, a
expressão de sua potencialidade e a realização de sua existência. A filosofia,
como resistencia, é a expressão de um tipo de homem que tem em sua própria força,
em sua coragem e em seu enfrentamento do medo, a causa motora. Entretanto, o
filósofo não fala para o aviltante animal de rebanho que nos tornamos.
“...
o que pode ser amado no homem, é que ele é um passar e um sucumbir. Amo Aqueles
que não sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois são os que atravessam.
Amo os do grande desprezo, porque são os do grande respeito, e dardos da
aspiração pela outra margem. Amo Aqueles que não procuram atrás das estrelas
uma razão para sucumbir e serem sacrificados: mas que se sacrificam à terra,
para que a terra um dia se torne do além-do-homem [...] Amo Aquele cuja alma é
profunda também no ferimento, e que por um pequeno incidente pode ir ao fundo
[...] Amo todos Aqueles que são como gotas pesadas caindo uma a uma da nuvem
escura que pende sobre os homens: eles anunciam que os relâmpagos vêm, e vão ao
fundo como anunciadores. (NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra.).
A
Filosofia se quiser contribuir para formar um individuo resistente a tudo que
avilta, amesquinha e destrói o ser humano, não pode se contentar em ser um
bálsamo para nossa dor ou sofrimento. Ao contrário, ela deve nos ensinar a
visão trágico-dionisíaca da existência – o terrível, a dor, o sofrimento, assim
como a alegria, fazem parte da vida que deve ser afirmada incondicionalmente. E
em vez de buscar um sentido para vida, a
filosofia deverá reconhecer que não há unidade na mutiplicidade e com
o devir é sem finalidade. E pior, também
não há outro mundo.
Essa
concepção trágica da vida deve ser acompanhada da consciência de que a cultura é o elemento central da vida humana.
Nietzsche diferencia culturas mais sadias e fortes criadoras de indivíduos
distintos, criativos e mais poderosos, e
culturas fracas e fragmentadas que geram seres medíocres e inferiores –
reféns do próprio medo. E a filosofia e arte seriam as guias e redentoras da
humanidade, os instrumentos de culturas fortes e sadias. Infelizmente, em nossa
sociedade, escolas e universidades vigora uma cultura de massas e superficial
alimentada pelos jornais (Midias) e uma
massificação do ensino restrito a profissionalização técnico-científia. Dai, a barbárie da cultura moderna uma mistura eclética de
estilos, idéias e obras que padece de um
racionalismo excessivo e individualismo egoísta que alimenta sua fragmentação
em especialidades.
Outro inconveniente que dificulta fazer da
filosofia e da própria educação espaços de resistência à bestialização e
apequenamento do homem é o excesso de
conhecimento histórico, que acaba tirando a efetividade do presente e a
criatividade. Com a proliferação dos estudos históricos, o homem moderno estava
sendo paralisado e esmagado pelo conhecimento histórico. Parece até que o homem
moderno não possui nada de próprio”. Acumulou uma enorme quantidade de
conhecimento,mas que não tem nenhum papel transformador de si mesmo e da vida
social. O estudo da história deveria ser posto a serviço da criação de grandes
personalidades e contribuir para o
renascimento de uma cultura afirmadora da vida.
O
contraste, então, é entre as “pessoas”, com suas tradições, “costumes e
direitos”, e o Estado moderno, com suas mentiras e pretensões, que se difundem
através da imprensa e da cultura de massa. Os movimentos democráticos, liberal,
feminista, anarquista e socialista , para Nietzsche, são expressões do declínio
da vida, da doença e do ressentimento. Sintomas de cultura decadente,
socrática, que valoriza a razão em detrimento da paixão. Suspendem sobre a vida
valores transcendentes.
O
erudito microscópico é o objetivo de praticamente todas as instituições de
educação e formação, do fundamental ao ensino superior. O meio é a pedagogia
moderna - misto de erudição e futilidade, de cientificismo e jornalismo; que
ajuda a formar os servidores do momento – homens de natureza bovina. O que
vemos então é a distribuição das disciplinas acadêmicas nos estabelecimentos
educacionais em grades de matérias muito rígidas, sem diálogo umas com as
outras, e cada vez mais atomizadas. Como
resultado desse processo temos o
erudito especialista.
Como
resistência a essa crescente especialização, instrumentalização da cultura e
hegemonia do discurso competente, temos que pelo menos tentar levar nossos
alunos a uma visão de conjunto (Theorein)
e a uma compreensão das dinâmicas e mecanismos fundamentais da sociedade
em que estão inseridos, oferecendo-lhes elementos culturais,
técnico-científicos, filosóficos, ético-politicos para que possam vislumbrar vetores de mudanças, possibilidades inscritas na aparente fatalidade com os fatos se
impõem.
Nietzsche
sempre condenou qualquer espécie de
metafisica, filosofia, religião ou moral que tenta separar o homem da natureza,
do momento presente, desta vida e deste mundo que ele vive aqui e agora. Como c
consequência a educação deve proporcionar condições para que mestres e alunos
afirmem a vida com novas aspirações, possibilidades e anseios, abrindo novos
caminhos.
Ninguém
pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no
fluxo da vida – ninguém, exceto tu. Certamente, existem as veredas e as pontes
e os semideuses inumeráveis que se oferecerão para te levar para outro lado do
rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias
como penhor e te perderias. Há no mundo um único caminho sobre o qual ninguém,
exceto tu, poderia trilhar. Para onde leva ele? Não perguntes nada, deves
seguir este caminho. ...um homem nunca se eleva mais alto senão quando
desconhece para onde seu caminho poderia levá-lo‟? (NIETZSCHE, 2003, p. 141).
O
que importa é o estar a caminho em
direção a uma outra forma de educar alicerçada em fundamentos filosóficos que
proporcionem uma visão de conjunto da realidade, uma cosmovisão crítica que
ajude a desvelar os mecanismos que nos fazem
tomar o aparente pelo real.
Enquanto espaço de resistência à cultura de massa reduzida a entretenimentos,
ao conhecimento jornalístico e
superficial que impede o pensar, a Escola não pode se contentar em fornecer
mais “recursos humanos” para o mercado e
o Estado.
O
resultado de nossa educação dita humanista é esse aviltante animal de rebanho,
que se curva sob o peso de suas degradantes virtudes e que sempre dá a outra
face em nome da paz dos covardes. Nietzsche parece querer que nossos sistemas
de ensino ajudem a encontrar e formar
indivíduos exemplares como aquele pensador que era uma luz solitária no cenário cinzento da modernidade: Arthur
Shopenhauer, um pensador errante, que nunca se conformou ou fez concessões, e
que estimulou milhões de jovens como Nietzsche a busca meios, ferramentas,
experimentos que nos permitam ver alternativas à barbárie instalada nesses
tempos de indigência.
Assim
como na paidéia grega, o exemplo incentivava os jovens a alcançarem excelência,
também em Nietzsche ele se torna um principio fundamental de sua proposta pedagógica.
Educadores que dão testemunho de vida e encarnam em suas existências o que
ensinam podem forjar as condições de possibilidade de uma educação para a resistência ao
estabelecido. “Teus educadores não podem ser outra coisa senão teus
libertadores. Eis aí o segredo de toda formação” (NIETZSCHE, 2003, p. 142). O
fato é que para Nietzsche não é possível superar a ordem do discurso vigente
sem uma boa educação que não pretende adaptar, conferir habilidades, mas
despertar potências, forjar espíritos livres. O que só seria possível com professores exemplares, algo
raro em uma cultura de erudição microscópica e jornalista como é a nossa. Esse
professor, cada vez mais raro, caminha junto, ele é um exemplo. Ele: “reconhece o ponto forte dos seus alunos e
dirige então todas as energias, todas as forças a fim de levar à maturidade e à
fecundidade esta única virtude.” (NIETZSCHE, 2003, p. 143).
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